segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Contos de hospital

Éramos todos iguais. Pelo menos ali, na enfermaria dos convênios, onde ficavam os que não podiam pagar por um apartamento. Dormíamos nas mesmas camas, comíamos à mesma hora e a todos era oferecida uma TV de quatorze polegadas que pegava três canais. Nessas horas sempre se pode apelar para um bom livro ou mesmo para uma caneta e um papel, mas, em verdade, o grande momento do dia estava na manhã. Às nove da matina nos era permitido deixar o monótono quarto marrom para explorar os corredores. Era o meu momento preferido; passar pelo estreito da enfermaria e chegar à varandinha para receber a luz do sol sem interferências ou para admirar o museu e a catedral que se projetavam à frente. Contudo, o sol, o museu e a catedral não bastaram naquele dia. Ávida por uma aventura, deixei minha estreita galeria e me lancei no restante do hospital. Não demorou para que uma escada me chamasse a atenção. Não conseguia ver onde ela ia dar e isso só me aumentou a curiosidade. Vinha vindo alguém e eu tinha que me esconder; sabia que não deveria estar ali mas a bisbilhotice falou mais alto e eu rompi escada acima. Vários lances de escada depois, cheguei numa porta que guardava um som muito estranho. Como se milhões de máquinas operassem exatamente ao mesmo tempo lá dentro. Num impulso levei a mão à maçaneta, queria desvendar o mistério, já não pensava mais. O coração acelerado batia ao ritmo das máquinas numa expectativa tão grande que me decepcionei ao girar a maçaneta. Cinco máquinas de lavar antigas (a idade explica o barulho) eram dirigidas por cinco funcionárias de avental. A primeira delas se virou assim que a porta se abriu e começou a resmungar sobre como crianças eram incovenientes. A segunda nem me viu e a terceira veio me perguntar de que diabo de jeito eu tinha ido parar ali. Ainda paralisada pelo fiasco de "desvendar" uma lavanderia com cinco velhas rabugentas, balbuciei qualquer desculpa em resposta e me apressei em voltar ao meu monótono quarto marrom. Mas a descoberta me havia incentivado. Amanhã eu iria espionar o depósito de vassouras.

Uma nota

No meu tempo, dois reais poderiam significar dinheiro demais ou dinheiro de menos. Para um milkshake, dinheiro de menos. Para um sorvete, dinheiro demais. Eu tinha acabado de sair do colégio a pé, sob o sol da tarde, a farda quente me matando e a sede me consumindo a garganta. Sem drama, nem pressão. O sorvete ficava na esquina da pracinha em que eu deveria esperar minha carona. Lugar lotado, duas atendentes, caos total. Uma delas, atordoada, não demorou em me preparar um Big Sundae com calda de morango, com o qual eu voltei, feliz da vida, ao banquinho da praça. Como todo gelado, acabou incrivelmente rápido, me levando a viver minutos de tédio enquanto meu pai não aparecia.
Comecei a pensar na vida, nas coisas, nas pessoas, na minha situação. Indo para o segundo ano, pobre, casa em construção. Dinheiro em falta. Dinheiro... se eu tivesse mais disso aqui eu ia correndo comprar uma água ou outro sorvete... sorvete... SORVETE! No meio da balbúrdia eu me havia esquecido de pagar o meu pequeno sorvete de creme. Num segundo, eu vi uma garota de farda correndo para a sorveteria da esquina, gritando desculpas, pelo amor de Deus. E entregando os únicos dois reais que tinha no bolso à atendente assustada com o grito ou com a honestidade. Honestamente, não sei. Mas sorri ao pensar que havia feito o certo. E o certo nem sempre traz lucro. Agora, por exemplo, eu não tinha mais dinheiro para outro sorvete. E no fim da história, eu descobriria que meu pai levaria ainda duas horas para chegar. Crise de abstinência ~modeON!


Clo Pês